Entrevista concedida em outubro de 2015 pelo presidente da Associação Brasileira de Citricultores (Associtrus), Flávio de Carvalho Pinto Viegas. Ele analisa as dificuldades por que têm passado os citricultores brasileiros, notadamente desde que a Frutesp, depois de ter sido adquirida por um grupo de aproximadamente 400 cooperados da Coopercitrus, sob a liderança dos dirigentes desta, acabou sendo vendida para um grupo privado em 1992.
Precedentes – breve história da Frutesp
Em 2014, em comemoração aos 50 anos de fundação da Cooperativa Agro Pecuária da Zona de Bebedouro (Capezobe), que em 1976 deu origem à Coopercitrus, a revista desta cooperativa paulista publicou uma série de seis artigos assinados pelo jornalista Allen A. Dupré sob o título: “Cooperativismo em Bebedouro – Meio Século de Sucesso Renovado”. O quarto capítulo dessa série foi inteiramente dedicado ao episódio, que durou 13 anos, envolvendo a compra, a operação e a posterior venda da Frutesp. Esse episódio durou pelo menos mais quatro anos, considerando as negociações que precederam a compra. A introdução desse capítulo da série foi a seguinte:
A aquisição da FRUTESP foi um dos episódios mais marcantes dos 50 anos do cooperativismo bebedourense e, provavelmente, um dos fatos mais relevantes de toda a história do cooperativismo brasileiro no setor agropecuário. Representou a vitória da determinação de um grupo de citricultores, cujo esforço para efetivar a compra dessa fábrica de suco de laranja concentrado consumiu anos, enfrentando a oposição de autoridades do governo paulista e teve que superar os interesses de poderosos grupos empresariais já estabelecidos no setor. Ao final, o êxito alcançado pelos produtores foi uma demonstração de força extraordinária do cooperativismo.
Para ler o capítulo completo, clique em: 50-anos-de-cooperativismo-em-bebedouro-parte-4
Leia a seguir a entrevista:
TodaFruta – Como surgiu a Associtrus, quantos associados tem atualmente?
Flavio Viegas – A Associtrus foi criada em 1974 e tem atualmente cerca de mil associados.
TodaFruta – No site da Associtrus, consta: “A Associtrus é a associação que une, defende, representa, orienta e dá suporte técnico e jurídico aos citricultores do Brasil. A Associtrus faz parte de um expressivo segmento do agronegócio brasileiro a citricultura – que, infelizmente, nas últimas décadas, distribui suas riquezas de forma desigual em função da concentração da renda nas mãos do setor industrial”. O TodaFruta pergunta: como ocorreu a concentração de renda nas mãos do setor industrial?
Flávio Viegas – Nas duas últimas décadas, a partir da venda da Frutesp, houve uma mudança total no modelo de produção até então nas mãos dos pequenos e médios produtores. Passou, desde então, a ser concentrado nos pomares próprios da indústria e de poucos grandes produtores. Isso foi conseguido através da discriminação de preços entre os produtores e imposição de preços da laranja abaixo do custo de produção para os que pretendia excluir, o que provocou uma enorme transferência de renda dos produtores para a indústria. Esse modelo de produção excluiu cerca de 200 mil empregos e tirou do mercado 20 mil produtores e 350 mil ha de citros desses produtores.
TodaFruta – Na palestra apresentada em 29 de abril de 2015, sob o tema PERSPECTIVAS DA CITRICULTURA PAULISTA, na UNESP/Jaboticabal, o senhor detalhou os procedimentos adotados pelo que chamou de CARTEL DA LARANJA, para minar a pujança dos pequenos produtores e desestabilizar a Frutesp. O senhor poderia dar mais informações sobre o ocorrido?
Flávio Viegas – As empresas concorrentes aliaram-se contra a Frutesp e atacaram seus fornecedores e clientes. A Frutesp pertencia a uma cooperativa de produtores e assegurava-lhes a participação nos lucros advindos da comercialização do suco e seus subprodutos. Essa foi a causa do ataque a ela. Decididas a se apossar integralmente dos lucros, as indústrias do Cartel da Laranja atacaram os fornecedores e clientes da Frutesp, oferecendo-lhes preços e condições insustentáveis, mas atraentes. Fornecedores da Frutesp receberam ofertas superiores a US$ 10 por caixa.
TodaFruta – Qual foi a importância da Frutesp e quais as causas da sua não existência nos dias de hoje?
Flávio Viegas – A Frutesp, além de criar um modelo de negócios que assegurava a participação do produtor nos resultados da empresa, balizou o mercado e permitiu uma distribuição de renda que se generalizou em todos os municípios citrícolas. A citricultura, então nas mãos de pequenos e médios citricultores que residiam nos municípios citrícolas, propiciou uma enorme prosperidade a esses municípios. A demanda por produtos e serviços estendeu-se para os setores de educação, saúde, cultura, etc. Os jovens, que antes partiam para estudar fora e não voltavam, passaram a retornar ante as novas oportunidades abertas pelo progresso criado pela citricultura. Mas a concentração das indústrias e sua verticalização deram às empresas que controlam o setor um enorme poder politico, econômico e de mercado, que permitiu que criassem uma barreira, praticamente intransponível, para a entrada e permanência de concorrentes no setor.
TodaFruta – Que medidas a Associtrus tem adotado para enfrentar essa barreira?
Flávio Viegas – O cartel, que vem sendo denunciado desde a década de 1970, foi novamente denunciado em 1999 e está sob investigação no CADE desde então. Esta ação vem sendo acompanhada pela Associtrus.
TodaFruta – Esse modelo baseado em privilegiar grandes plantadores em detrimento de outros é um modelo que podemos considerar como socialmente indesejável?
Flávio Viegas – Os modelos de citricultura adotados após a venda da Frutesp e, infelizmente, apoiados pelos governos que se sucederam nas ultimas décadas, destruíram um modelo eficiente de distribuição de renda e empregos e o substituíram por um modelo concentrador e destruidor de riqueza, empregos e esperança. O modelo de grandes pomares, que têm pouca ou nenhuma relação com os municípios que os abrigam, imposto pelas esmagadoras de laranja, traz a esses municípios somente o ônus de acolherem e dar assistência às centenas de “boias frias” que são ali “despejados” por ocasião da colheita.
TodaFruta – Que medidas seriam recomendadas, se aprovadas pelo governo, para enfrentar esse Cartel da Laranja?
Flávio Viegas – Seria preciso, em primeiro lugar, que o governo reconhecesse a importância da agricultura e em particular dos médios agricultores; em seguida, que reconhecesse que a cartelização, que avança no agronegócio, é altamente destrutiva de riquezas e de caráter pelo seu alto poder corruptor; e, a partir disso, agisse com rigor e presteza para punir exemplarmente esse cartel.
TodaFruta – Não corremos o risco de ver esse modelo praticado na citricultura ser estendido a outras atividades, como a cana-de-açúcar?
Flávio Viegas – Os ganhos obtidos pela cartelização, a dificuldade em comprovar e punir este tipo de crime, muito bem organizado, sempre associado a grandes empresas altamente profissionalizadas e com grande poder politico e econômico, tem incentivado outros setores econômicos a se cartelizarem. Há fortes evidências de que carteis controlem outros setores importantes de nossa economia, em particular no agronegócio.
TodaFruta – Consta no site da Associtrus que a entidade “não mede esforços para divulgar aos seus associados as últimas informações do setor, orientando-os quanto ao fechamento de contratos e/ou demais necessidades”. Perguntamos: a que pontos críticos o produtor deve prestar atenção no fechamento de um contrato?
Flávio Viegas – Os contratos apresentam vários riscos. Todas as cláusulas precisam ser cuidadosamente analisadas por advogados experientes. Mesmo assim, as indústrias têm o poder de impor revisão dos contratos, se estes se tornam desinteressantes para elas, e impor o cumprimento integral do contrato, em caso contrário. Os contratos transformam-se numa forma de “amarrar” o produtor, pois quando as condições contratuais se tornam muito desvantajosas para este, as empresas concedem pequenas compensações com a condição de que o contrato seja estendido por um ou mais anos, nas condições contratadas.
TodaFruta – Como ocorreu o fechamento dos contratos para 2015?
Flávio Viegas – Os contratos para a safra 2015/16 ainda não foram fechados. Alguns negócios na faixa dos US$ 5 por caixa foram fechados. Apesar da quebra de produção na Flórida, que implica maiores exportações para o mercado norte-americano, os baixos estoques no Brasil e a quebra de safra em São Paulo deixam os citricultores sob pressão das indústrias que, dispondo de mais de 50% da fruta que processam, podem retardar indefinidamente a compra e impor, impunemente, seu enorme poder de mercado.
TodaFruta – Qual é o consumo de laranja per capita no Brasil e em outros países?
Flávio Viegas – Como acontece no Brasil, em todos os setores, as estatísticas são muito deficientes e os números pouco confiáveis. Estima-se que o consumo interno seja da ordem de 100 a 150 milhões de caixas de 40,8 kg.
TODAFRUTA – Comentava o prof. Carlos Ruggiero, durante o evento Tópicos Avançados de Citros, realizado na UNESP/Jaboticabal em 29/04/2015: “Santa Catarina, embora apresentando condições topográficas, bem como climáticas, não totalmente adequadas à bananicultura, apresenta a melhor média de produtividade da cultura no Brasil. Isso se deve ao forte associativismo lá existente”. Como a Associtrus vê as possibilidades do crescimento do associativismo na citricultura brasileira?
Flávio Viegas – O grande problema da agricultura paulista, em particular da citricultura, é, a nosso ver, a falta de organização dos produtores, seu individualismo e, portanto, a falta de associativismo. Isso acentua a assimetria de poder entre os produtores e as grandes corporações que controlam o fornecimento de insumos e a aquisição da produção. Uma melhor organização significaria melhores informações, menor submissão e maior renda aos produtores.
TodaFruta – Podemos, portanto, considerar que a venda da Frutesp, embora ocorrida há quase 25 anos, seja a grande causa da crise que a citricultura brasileira enfrenta?
Flávio Viegas – Sim, sem dúvida nenhuma a venda da Frutesp foi o início da crise que enfrentamos.
TodaFruta – Um possível caminho não seria orientar os pequenos produtores a mudar de variedades, concentrando a produção em variedades para mesa, fugindo da concorrência do Cartel da Laranja?
Associtrus – Seria um caminho, porém há outros problemas que precisam ser enfrentados. A estrutura de comercialização no mercado interno é muito deficiente e as processadoras, com seus enormes pomares, têm a capacidade de desorganizar ainda mais este mercado ao oferecer sua fruta a preços baixos, para venda no varejo, como tem feito frequentemente.
TodaFruta – Como a Associtrus vê o mercado de sucos no Brasil e, neste contexto, como se insere o suco de laranja?
Flávio Viegas – O Brasil é um grande consumidor de sucos, porém os sucos industrializados sofrem alguma restrição em virtude de preço, disponibilidade e imagem de produto não natural. Se fizermos os cálculos, a partir das estimativas de vendas de laranja em São Paulo e sabendo que quase a totalidade da fruta é consumida na forma de suco, o São Paulo estaria no nível dos maiores países consumidores de suco do mundo.
TodaFruta – Uma pergunta que vários internautas nos fizeram é: o que eu ganho em associar-me à Associtrus?
Flávio Viegas – Em uma cadeia produtiva, os setores menos organizados transferem renda para os setores mais organizados. Este é o nosso caso. Sem organização e sem mobilização, estaremos condenados à insignificância, não seremos ouvidos nas nossas instituições, na sociedade, não teremos espaço na mídia e assim ficaremos ainda mais submetidos aos interesses da indústria.
TodaFruta – Na avaliação do desempenho de uma atividade, é fundamental que o produtor tenha um custo detalhado de cada item inerente à produção e comercialização, como, por exemplo, de uma caixa de laranja. Como a Associtrus poderia auxiliar os produtores interessados nesse aspecto?
Flávio Viegas – A Associtrus tem discutido e publicado planilhas detalhadas, por meio das quais buscamos alertar o produtor de que os custos de produção da citricultura vão muito além dos custos operacionais. Uma atividade de ciclo longo como a citricultura precisa ter seu custo avaliado ao longo de seu ciclo, que define uma curva de produção. A remuneração do produtor deve incorporar a depreciação do pomar, para permitir que o citricultor acumule recursos para a sua renovação, a remuneração da terra, a remuneração do trabalho do citricultor e ainda uma margem para cobrir os riscos (climáticos, financeiros, econômicos, etc.). Atribuo à organização o fato de os citricultores da Flórida receberem uma remuneração que chega a ser 5 vezes superior à do citricultor brasileiro.
TodaFruta – Qual a produtividade média dos pomares brasileiros? Como ela é comparada às de outros países?
Flávio Viegas – A produtividade dos pomares brasileiros está no mesmo nível das alcançadas nas citriculturas mais desenvolvidas do mundo. Porém, no Brasil, é a citricultura que propicia uma das menores remunerações aos produtores.
TodaFruta – Como a Associtrus vê a ameaça do “greening” e outras doenças para a fruticultura brasileira, onde fica evidente a importância de um associativismo eficiente?
Flávio Viegas – O “greening” é uma das maiores ameaças à citricultura. A sobrevivência dos citricultores depende do controle regional desse mal; e o controle exclusivamente dentro da propriedade é totalmente ineficaz se não for feito também nos pomares circunvizinhos.
TodaFruta – Comenta o prof. Carlos Ruggiero: “Visitamos, com o Prof. Luiz Carlos Donadio, o Museu da Uva e Vinha, em Briones, na Espanha”. Como a Associtrus vê as possibilidades de ser construído o Museu da Laranja, em Bebedouro SP?
Flávio Viegas – As tentativas de organização do museu foram abaladas pelas crises que temos enfrentado e pelo desânimo dos citricultores. Um capítulo importante da nossa história está sendo condenado ao esquecimento!
TodaFruta – Quais as recomendações que a Associtrus gostaria de transmitir aos citricultores brasileiros?
Flávio Viegas – Temos a convicção de que o problema do agronegócio brasileiro e, em particular, da citricultura é a falta de renda. Essa perda de renda é decorrente da falta de organização e mobilização, para que os demais elos da cadeia não se apropriem de toda a renda do setor, como tem ocorrido. O mercado de sucos e, em especial, o de suco de laranja deverá continuar crescendo, mas se não houver solução para a concentração, cartelização e verticalização do setor industrial, os citricultores terão enormes dificuldades para garantir uma renda compatível com os custos e riscos da atividade.